Durante décadas, a globalização foi aclamada como o grande motor do crescimento econômico mundial. Com efeito, empresas expandiram suas operações para além das fronteiras nacionais, enquanto, concomitantemente, cadeias de suprimentos se espalharam por múltiplos continentes. E, consequentemente, produtos fabricados do outro lado do planeta chegaram às nossas casas com a facilidade de apenas alguns cliques. Contudo, o discurso hegemônico começou a mudar, e, atualmente, fala-se cada vez mais sobre a Desglobalização Estratégica como um novo paradigma. Trata-se, de fato, de um movimento que, à primeira vista, parece contradizer tudo o que foi construído desde a intensificação da globalização nos anos 1990.
Observamos, por exemplo, governos defendendo com mais veemência a autonomia estratégica. Paralelamente, empresas buscam ativamente reduzir os riscos associados à dependência internacional. E, por fim, consumidores começam a valorizar mais os produtos locais. Mas, afinal, estamos mesmo diante de um processo inexorável de desglobalização? Ou seria, talvez, apenas uma reconfiguração da globalização? Neste artigo aprofundado, portanto, vamos analisar os dados, as tendências e as implicações dessa possível mudança, explorando, inclusive, como a Desglobalização Estratégica se manifesta e quais seus reais contornos.
O Que é, de Fato, a Desglobalização Estratégica? Uma Definição Necessária
Antes de prosseguirmos, é crucial desmistificar o termo. A Desglobalização Estratégica não significa, de forma alguma, o fim completo da globalização como um todo. Tampouco representa, verdadeiramente, um retorno ao isolamento comercial total ou ao protecionismo exacerbado que caracterizou outras épocas históricas. Na prática, em vez disso, ela representa uma série de mudanças comportamentais, políticas e empresariais interconectadas, que visam, primordialmente, a uma gestão de riscos mais apurada e à priorização de interesses nacionais ou de blocos regionais em áreas consideradas críticas.
Podemos, assim, delinear suas principais características:
- ✅ Redução da Interdependência Econômica Extrema: Busca-se diminuir a vulnerabilidade excessiva a um único país ou região para o fornecimento de bens, serviços ou tecnologias críticas. Isso implica, por exemplo, em diversificar fornecedores.
- ✅ Reconfiguração das Cadeias de Suprimento: Há um movimento claro em direção a uma maior regionalização (nearshoring – trazer a produção para países próximos) e, em alguns casos específicos, à produção local (reshoring – trazer a produção de volta ao país de origem), especialmente para itens estratégicos.
- ✅ Políticas Econômicas Mais Nacionalistas (Porém Seletivas): Governos implementam incentivos à indústria doméstica em setores chave (como semicondutores ou energia renovável) e aplicam tarifas comerciais de forma mais estratégica e direcionada, não necessariamente como uma barreira generalizada ao comércio.
- ✅ Prioridade para Soberania em Áreas Críticas: Soberania energética, tecnológica (incluindo dados e IA), alimentar e sanitária tornaram-se preocupações centrais para a segurança e autonomia nacional. Consequentemente, políticas são desenhadas para fortalecer essas áreas internamente.
Em essência, portanto, a Desglobalização Estratégica é um processo mais calculado e seletivo. Ela não rompe, efetivamente, com o mundo globalizado, mas, sim, tenta torná-lo mais resiliente, menos suscetível a choques internacionais imprevistos e mais alinhado aos interesses estratégicos de longo prazo de nações ou blocos regionais.
Fatores que Impulsionaram o Movimento de Desglobalização Estratégica
A ascensão da Desglobalização Estratégica não surgiu por acaso. Pelo contrário, ela é uma resposta direta e racional a uma série de choques globais profundos. Esses eventos, por sua vez, colocaram em xeque os limites e as vulnerabilidades da interdependência econômica desenfreada que caracterizou as décadas anteriores.
1. O Impacto Disruptivo e Duradouro da Pandemia de COVID-19
Primeiramente, a crise sanitária global, iniciada em 2020, escancarou, de forma dramática e inesquecível, a fragilidade das cadeias globais de suprimento. Países inteiros, incluindo as nações mais ricas, se viram subitamente sem acesso a máscaras, medicamentos essenciais, equipamentos de proteção individual (EPIs), respiradores e até mesmo certos tipos de alimentos básicos. Isso ocorreu, fundamentalmente, porque dependiam da produção concentrada em poucas nações, principalmente na Ásia.
Como consequência direta e imediata dessa percepção de vulnerabilidade:
- Reindustrialização Estratégica: Muitos governos, após a crise, iniciaram planos ambiciosos de reindustrialização, com foco em setores considerados vitais para a segurança nacional e a saúde pública, como, por exemplo, a produção farmacêutica e de equipamentos médicos.
- Aumento da Produção Local e Regional: Houve, também, um aumento significativo da busca por produção local ou regional de insumos médicos, componentes tecnológicos e outros bens essenciais, visando, assim, reduzir a dependência de fornecedores distantes.
- Novos Termos no Debate Político-Econômico: Termos como “autonomia industrial”, “soberania sanitária”, “resiliência das cadeias de valor” e “segurança de abastecimento” passaram a dominar o debate político e as estratégias empresariais em todo o mundo.
2. Conflitos Geopolíticos Crescentes e o Uso de Sanções Econômicas como Arma
Em segundo lugar, a intensificação de conflitos geopolíticos regionais e a crescente rivalidade entre grandes potências, juntamente com o uso cada vez mais frequente de sanções econômicas como ferramenta de política externa, minaram profundamente a confiança no sistema de comércio global baseado em regras e na interdependência mútua.
- Impacto de Guerras Regionais na Economia Global: A guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, afetou drasticamente o fornecimento global de grãos (trigo, milho), energia (gás natural, petróleo) e fertilizantes. Isso, por sua vez, gerou picos inflacionários, insegurança alimentar em nações vulneráveis e uma corrida por fontes alternativas de energia.
- Tensões entre Superpotências e a Guerra Tecnológica: A disputa acirrada entre Estados Unidos e China pela hegemonia tecnológica – particularmente em áreas como semicondutores, 5G, inteligência artificial e biotecnologia – intensificou a fragmentação do cenário tecnológico global. Observamos, assim, a criação de “esferas de influência” geoeconômicas e restrições à transferência de tecnologia.
- Uso Frequente de Sanções e Embargos: Ademais, sanções bilaterais e multilaterais, embargos e bloqueios comerciais se tornaram instrumentos comuns na geopolítica contemporânea. Essas medidas, consequentemente, afetam a previsibilidade e a estabilidade dos fluxos comerciais e de investimento, forçando empresas a reavaliar seus riscos.
Esses eventos, em conjunto, provocaram uma mudança fundamental na mentalidade: depender de um único fornecedor ou país para bens e tecnologias críticas passou a ser visto como um risco estratégico inaceitável.
3. A Crise Logística Global Pós-Pandemia e Seus Efeitos Prolongados
Outro fator determinante, sem dúvida, foi a crise logística sem precedentes que se seguiu à retomada econômica pós-COVID. O mundo testemunhou um colapso parcial da eficiência das cadeias de suprimento globais, manifestado por: Congestionamento massivo em portos estratégicos; bem como por falta generalizada de contêineres e navios; e ainda por custos de frete marítimo que se multiplicaram; resultando em atrasos generalizados em entregas.
Diante desse caos, então, empresas foram forçadas a buscar maior resiliência, mesmo que isso significasse um custo ligeiramente maior.
4. Ascensão do Nacionalismo Econômico e Preocupações Sociais Internas
Finalmente, não se pode ignorar o crescente sentimento de nacionalismo econômico. Este fenômeno é alimentado, em parte, por preocupações com a perda de empregos e o aumento da desigualdade. Consequentemente, políticos passaram a demandar políticas que priorizem a produção local.
Sinais Concretos de Desglobalização Estratégica no Cenário Atual
A Desglobalização Estratégica é observável em diversas políticas.
1. “Reshoring” e “Nearshoring” Ganhando Força na Cadeia Produtiva Global
- Reshoring: Empresas trazendo produção de volta. Isso ocorre, por exemplo, para garantir a produção de bens essenciais.
- Nearshoring: Transferência de fábricas para países próximos. Busca-se, assim, reduzir riscos logísticos.
- Exemplos: Empresas americanas investindo nos EUA e México; UE incentivando produção de semicondutores.
2. Aumento de Barreiras Tarifárias Seletivas e Incentivos à Produção Doméstica
Embora não seja um protecionismo generalizado, observa-se, sim, um aumento no uso de:
- Barreiras tarifárias seletivas para proteger setores estratégicos.
- Leis de “compre nacional”, como o “Buy American Act”.
- Vultosos pacotes de incentivos fiscais para produção nacional.
3. Fortalecimento dos Blocos Econômicos Regionais como Resposta à Desglobalização
A integração regional ganha nova importância. Assim, blocos como Mercosul e UE estão mais ativos. O comércio intrarregional, em muitos casos, cresce. Além disso, há maior ênfase na padronização.
A Globalização Acabou? Nem de Longe. É uma Reconfiguração da Ordem Global.
É crucial reiterar: o mundo não está se isolando. O que estamos testemunhando, na verdade, é uma evolução.
🔄 A Nova Fase da Globalização se Caracteriza por:
- Cadeias Produtivas Mais Curtas, porém, ainda interconectadas.
- Comércio de Serviços Digitais em Expansão. Por exemplo, streaming, fintechs e IA.
- Cooperação Global Ainda Necessária, especialmente para desafios transnacionais.
- Movimentação Intensa de Capital e Informação, mesmo com barreiras físicas.
💡 Em resumo: a globalização de bens tangíveis sofre restrições. No entanto, a globalização intangível cresce.
Oportunidades para o Brasil no Cenário da Desglobalização Estratégica
O Brasil, com seus vastos recursos, tem muito a ganhar – desde que, claro, saiba se posicionar.
📌 Oportunidades Estratégicas para o Brasil na Nova Globalização:
- Atrair Indústrias que Buscam Diversificação: Empresas que procuram segurança e energia limpa podem ver o Brasil como atraente. O país, ademais, pode suprir mercados com menor risco. Isso se aplica, por exemplo, a setores farmacêuticos ou de componentes eletrônicos que buscam alternativas à Ásia.
- Ampliar Exportações Regionais e Consolidar Liderança: Com o fortalecimento do Mercosul, o Brasil pode se consolidar como líder no Sul Global. Isso exige, contudo, uma diplomacia ativa e a modernização de acordos.
- Reindustrializar com Base Tecnológica e Sustentável: A Desglobalização Estratégica pode ser o catalisador. Porém, focado em semicondutores, biotecnologia e energias renováveis.
⚠️ Riscos e Desafios para o Brasil nesta Reconfiguração Global:
- Isolamento Diplomático: Caso não participe de novas alianças.
- Falta de Competitividade: Sem reformas estruturais.
- Dificuldade em Substituir Importações: Especialmente em alta tecnologia.
Desglobalização Estratégica e Digitalização: Um Paradoxo Apenas Aparente
A Desglobalização Estratégica não significa regressão tecnológica. Muito pelo contrário: ela é habilitada pela digitalização.
📌 Exemplos de Interações Complementares:
- Plataformas Digitais e Comércio Global para PMEs: Permitem que PMEs locais vendam globalmente.
- Inteligência Artificial e Gestão de Riscos: Empresas usam IA para mapear riscos. Com isso, tomam decisões mais informadas sobre produção.
- Logística Inteligente e Cadeias Menores: Plataformas digitais viabilizam cadeias eficientes e rastreáveis.
- Trabalho Remoto Global e Serviços Digitais: Uma forma de globalização que independe da movimentação de bens. Assim, talentos podem ser acessados globalmente.
Ou seja: a nova economia será mais local para bens estratégicos, mas também mais global no digital.
Conclusão: A Desglobalização é Real — Mas Parcial, Estratégica e Inteligente
O mundo não está rompendo com a globalização. O que estamos testemunhando, na verdade, é uma profunda reformulação. O objetivo é, primordialmente, torná-la mais segura e resiliente.
Estamos, portanto, diante de um processo de:
- Regionalização estratégica, com, por exemplo, menor dependência de poucos países.
- Além disso, valorização do mercado interno, sem, contudo, perder o acesso ao comércio exterior.
- E, finalmente, digitalização profunda, que conecta mesmo em contextos mais fechados.
📌 Para os países emergentes, como o Brasil, entender este novo equilíbrio é fundamental. Aqueles que souberem combinar abertura seletiva, inovação doméstica e diplomacia ativa, certamente sairão fortalecidos. A Desglobalização Estratégica, em última análise, não é o fim da integração. Pode ser, ao invés disso, o início de uma globalização mais consciente.